sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

A cultura do recorde.


Na arrancada brasileira vige a cultura do recorde. Das conversas de oficina ao próprio sistema de competições sem enfrentamento direto e decisivo, todos caminhos levam à essa mentalidade.

Mas o que é a cultura do recorde e como ela afeta o esporte?

Como essa maneira de pensar tomou conta da arrancada é uma questão difícil de decidir, porém essa complexidade não vem ao caso. Não importa se primeiro veio o receio de certos pilotos de correrem lado a lado, o formato encontrado para reduzir o número de puxadas a fim de acomodar um enorme número de categorias em um período relativamente curto de competição ou a possibilidade de valorizar uma puxada rápida de um carro sozinho, já que a falta de quórum é um dos principais problemas de algumas categorias.

O fato é, que arrancada sem confronto decisivo confunde e desmobiliza o público mais leigo e a transforma num esporte de segmento, reduzindo sua abrangência e tolhendo seu potencial para crescer. Aquele cara que está na arquibancada porque resolveu conhecer o espetáculo da arrancada, mas não é amigo ou familiar de piloto, NÃO SABE NADA SOBRE AS REGRAS. Muito menos sabe o que significam todas aquelas letrinhas que servem para denominar as categorias. Não compreende sequer porque um carro com tração traseira tem vantagem sobre um carro de tração dianteira, ou a disparidade entre um motor turbo e um aspirado.

Eu sei, para vocês aficionados é difícil até imaginar que exista tal pessoa. Mas é fácil pensar assim quando se está acostumado com todas as idéias e conceitos tradicionais da arrancada do Brasil, pois a paixão pela essência do esporte para nós vence tudo isso. Mas na verdade, para encher uma arquibancada de 20, 30 mil lugares com a frequência das provas de uma temporada e para tornar o esporte viável comercialmente, é preciso que o esporte acesse justamente essas pessoas. A única forma de alguns leitores compreenderem o que eu quero dizer, é propondo aquele velho exercício de colocar-se no lugar do outro. E para isso temos que abandonar a arrancada por um segundo, pois ela é território conhecido de todos nós.

Imagine então que você foi transportado para um outro lugar. Está em um estádio diferente, que não é de futebol ou futebol americano. Os jogadores impecavelmente uniformizados arremessam e rebatem uma pequena bola de couro e madeira, mas o jogo também não é baseball. Nas arquibancadas de um estádio moderno e com boa infra estrutura você percebe não só uma grande multidão de fãs, mas também um carro 0km exposto em destaque, como prêmio máximo de alguma promoção para os espectadores que estão no local.

Vê as câmeras de TV e os repórteres fazendo a cobertura ao vivo. Escuta os seus colegas de arquibancada comentarem sobre a paixão nacional por esse esporte e rivalidade com o país vizinho. Ouve sobre o salário altíssimo dos atletas e que os direitos de televisionamento das partidas foram negociados por uma cifra na casa dos milhões de dólares.

Você está no Paquistão, vendo uma partida da seleção de Críquete contra a Índia.

Partida de críquete profissional na Ásia.

Você pode ver a empolgação dos torcedores, a concentração dos atletas e toda a infraestrutura, porém nada disso lhe importa no momento, pois o jogo é totalmente incompreensível para você! Para que passe a efetivamente gostar da disputa, é preciso que você compreenda algumas pequenas coisas como os objetivos do jogo, suas regras e aqueles detalhes que fazem a tradição de cada esporte, independentemente da importância que o jogo tenha para as pessoas que lá estão.

A arrancada deveria ser o esporte mais simples de todos, afinal são dois carros e uma reta. Quem chegar primeiro ganha. Mas não é assim que um possível futuro fã vê a corrida das arquibancadas.

Algumas provas são organizadas em dois dias, porém a grande maioria das pessoas vai assistir somente no domingo. E é possível que esse fã que ainda não conquistamos, veja 3 arrancadas da categoria STTD-C, nas quais "o Gol vermellho ganhou todas do Gol branquinho" e assim mesmo, graças a uma puxada ocorrida no sábado quando ele nem estava lá, quem sobe no degrau mais alto do pódio é o piloto do Gol branco.

Mas é mais complicado que isso ainda, pois dificilmente esses dois carros alinham sempre juntos. O que de fato ocorre é que o coitado do espectador vai ver o Golzinho vermelho que ele gostou arrancar contra um Gol prateado, um amarelo e um todo colorido. O "vermelhinho" pode ganhar uma, perder duas e ainda assim sagrar-se campeão.

De fato, não dá para entender como funciona a prova. E somente após MUITA explicação de alguém paciente e que ENTENDE BEM do esporte, o nosso espectador já desgastado de tanto palavrório vai compreender finalmente que não existe relação entre ganhar uma ou mesmo a maioria das puxadas e vencer a prova. Vai então decepcionado concluir que tanto faria se cada carro corresse sozinho, que o oponente ao seu lado faz apenas figuração e que só o que vale é o tempo da puxada.

O dia acaba, nosso quase-futuro-fã vai para casa e não pensa mais no assunto. No mês que vem ele vai estar novamente na arquibancada, porém todo fardado igual às outras 50 000 pessoas que lhe rodeiam, gritando: "GOOOOOOL!" Feliz como "um pinto no lixo", unido a uma equipe e comemorando a simplicidade do futebol que lhe invade a vida através do radio, televisão, jornal, internet e principalmente dos amigos e colegas que na segunda feira ele vai flautear ou deles fugir, dependendo do resultado do jogo do final de semana.

A compreensão do futebol para ele se traduz em coisas simples, como a "sua equipe", que é a torcida ao seu lado, com o inconfundível uniforme do time e suas cores. A "equipe adversária", que são todas as pessoas que vestem o uniforme de outra cor. O placar, no qual o vencedor é aquele que ao final do jogo obtiver o escore mais alto. E o gol... Cada gol é uma injeção de um coquetel incrível de adrenalina, felicidade, satisfação e êxtase, comungada por milhares de pessoas no mesmo instante.

Para um humilde cidadão que busca entretenimento, pouco importa o recorde. Tudo o que ele enxerga é um carro andando sozinho numa pista. Não há disputa, não há emoção e não há drama. Ele não sabe e nem tem como saber todos os sacrifícios que aquele piloto ou preparador passou para chegar nesse tempo. Só percebe que o produto que lhe foi vendido na bilheteria não proporciona o divertimento imaginado. A importância cultural do recorde tem de ser suplantada pela importância real da VITÓRIA. Mesmo na F1, não importa quem estabelece o recorde de volta ou a volta mais rápida da corrida e sim quem chega na frente ao término de todas as voltas.

Essa cultura de recorde tem de ser urgentemente substituída por algo mais moderno, mais dinâmico e mais acessível ao grande público. Para atraí-lo, os organizadores da arrancada tem duas opções: Ou fazem uma competição estruturada como um torneio, com "pé e cabeça", com começo meio e fim, com ritmo e um cronograma aceitável para quem está sentado no concreto duro, ou então partem para as atrações circenses como os shows de manobras radicais, puxadas de demonstração de carros à jato e coisas do gênero.

Contudo, desconheço alguém que vá ao circo duas vezes em um só ano, ao menos por vontade própria... Imagine então lotar as arquibancadas em uma temporada inteira!

Um comentário:

Seguidores