A arrancada evoluiu em muitos aspectos nos últimos dois anos, mas ainda há um longo caminho pela frente até que ela possa ser considerada um verdadeiro esporte. Existem muitas definições para a palavra, mas todas elas sempre trazem a mesma essência:
"Esporte é uma atividade sujeita a regulamentos predeterminados que visa a competição entre os praticantes, envolvendo sempre a capacidade física, motora ou de concentração e destreza, que tem em vista uma melhora física e espiritual do SER HUMANO".
Em resumo: O esporte é uma atividade que promove o aperfeiçoamento humano através da competição entre adversários opostos.
E a arrancada atual tem muito pouco desses valores, quase que exclusivamente valorizando o recorde ao invés da vitória, tirando da equação o fator competitividade que era dado pela disputa entre os dois pilotos.
Ao valorizar somente a melhor performance, podendo ser descartados todos os erros, só resta em julgamento a qualidade do equipamento, que em última instância é resumida por um simples e desigual fator: O dinheiro investido.
E essa é a definição de anti-esporte.
Por isso, trago novamente dois textos velhos do blog, que seguem mais atuais do que nunca:
A Cultura do Recorde
Na arrancada brasileira vige a cultura do recorde. Das conversas de oficina ao próprio sistema de competições sem enfrentamento direto e decisivo, todos caminhos levam à essa mentalidade.
Mas o que é a cultura do recorde e como ela afeta o esporte?
Como essa maneira de pensar tomou conta da arrancada é uma questão difícil de decidir, porém essa complexidade não vem ao caso. Não importa se primeiro veio o receio de certos pilotos de correrem lado a lado, o formato encontrado para reduzir o número de puxadas a fim de acomodar um enorme número de categorias em um período relativamente curto de competição ou a possibilidade de valorizar uma puxada rápida de um carro sozinho, já que a falta de quórum é um dos principais problemas de algumas categorias.
O fato é, que arrancada sem confronto decisivo confunde e desmobiliza o público mais leigo e a transforma num esporte de segmento, reduzindo sua abrangência e tolhendo seu potencial para crescer. Aquele cara que está na arquibancada porque resolveu conhecer o espetáculo da arrancada, mas não é amigo ou familiar de piloto, NÃO SABE NADA SOBRE AS REGRAS. Muito menos sabe o que significam todas aquelas letrinhas que servem para denominar as categorias. Não compreende sequer porque um carro com tração traseira tem vantagem sobre um carro de tração dianteira, ou a disparidade entre um motor turbo e um aspirado.
Eu sei, para vocês aficionados é difícil até imaginar que exista tal pessoa. Mas é fácil pensar assim quando se está acostumado com todas as idéias e conceitos tradicionais da arrancada do Brasil, pois a paixão pela essência do esporte para nós vence tudo isso. Mas na verdade, para encher uma arquibancada de 20, 30 mil lugares com a frequência das provas de uma temporada e para tornar o esporte viável comercialmente, é preciso que o esporte acesse justamente essas pessoas. A única forma de alguns leitores compreenderem o que eu quero dizer, é propondo aquele velho exercício de colocar-se no lugar do outro. E para isso temos que abandonar a arrancada por um segundo, pois ela é território conhecido de todos nós.
Imagine então que você foi transportado para um outro lugar. Está em um estádio diferente, que não é de futebol ou futebol americano. Os jogadores impecavelmente uniformizados arremessam e rebatem uma pequena bola de couro e madeira, mas o jogo também não é baseball. Nas arquibancadas de um estádio moderno e com boa infra estrutura você percebe não só uma grande multidão de fãs, mas também um carro 0km exposto em destaque, como prêmio máximo de alguma promoção para os espectadores que estão no local.
Vê as câmeras de TV e os repórteres fazendo a cobertura ao vivo. Escuta os seus colegas de arquibancada comentarem sobre a paixão nacional por esse esporte e rivalidade com o país vizinho. Ouve sobre o salário altíssimo dos atletas e que os direitos de televisionamento das partidas foram negociados por uma cifra na casa dos milhões de dólares.
Você está no Paquistão, vendo uma partida da seleção de Críquete contra a Índia.
Partida de críquete profissional na Ásia.
Você pode ver a empolgação dos torcedores, a concentração dos atletas e toda a infraestrutura, porém nada disso lhe importa no momento, pois o jogo é totalmente incompreensível para você! Para que passe a efetivamente gostar da disputa, é preciso que você compreenda algumas pequenas coisas como os objetivos do jogo, suas regras e aqueles detalhes que fazem a tradição de cada esporte, independentemente da importância que o jogo tenha para as pessoas que lá estão.
A arrancada deveria ser o esporte mais simples de todos, afinal são dois carros e uma reta. Quem chegar primeiro ganha. Mas não é assim que um possível futuro fã vê a corrida das arquibancadas.
A arrancada deveria ser o esporte mais simples de todos, afinal são dois carros e uma reta. Quem chegar primeiro ganha. Mas não é assim que um possível futuro fã vê a corrida das arquibancadas.
Algumas provas são organizadas em dois dias, porém a grande maioria das pessoas vai assistir somente no domingo. E é possível que esse fã que ainda não conquistamos, veja 3 arrancadas da categoria STTD-C, nas quais "o Gol vermellho ganhou todas do Gol branquinho" e assim mesmo, graças a uma puxada ocorrida no sábado quando ele nem estava lá, quem sobe no degrau mais alto do pódio é o piloto do Gol branco.
Mas é mais complicado que isso ainda, pois dificilmente esses dois carros alinham sempre juntos. O que de fato ocorre é que o coitado do espectador vai ver o Golzinho vermelho que ele gostou arrancar contra um Gol prateado, um amarelo e um todo colorido. O "vermelhinho" pode ganhar uma, perder duas e ainda assim sagrar-se campeão.
De fato, não dá para entender como funciona a prova. E somente após MUITA explicação de alguém paciente e que ENTENDE BEM do esporte, o nosso espectador já desgastado de tanto palavrório vai compreender finalmente que não existe relação entre ganhar uma ou mesmo a maioria das puxadas e vencer a prova. Vai então decepcionado concluir que tanto faria se cada carro corresse sozinho, que o oponente ao seu lado faz apenas figuração e que só o que vale é o tempo da puxada.
Mas é mais complicado que isso ainda, pois dificilmente esses dois carros alinham sempre juntos. O que de fato ocorre é que o coitado do espectador vai ver o Golzinho vermelho que ele gostou arrancar contra um Gol prateado, um amarelo e um todo colorido. O "vermelhinho" pode ganhar uma, perder duas e ainda assim sagrar-se campeão.
De fato, não dá para entender como funciona a prova. E somente após MUITA explicação de alguém paciente e que ENTENDE BEM do esporte, o nosso espectador já desgastado de tanto palavrório vai compreender finalmente que não existe relação entre ganhar uma ou mesmo a maioria das puxadas e vencer a prova. Vai então decepcionado concluir que tanto faria se cada carro corresse sozinho, que o oponente ao seu lado faz apenas figuração e que só o que vale é o tempo da puxada.
O dia acaba, nosso quase-futuro-fã vai para casa e não pensa mais no assunto. No mês que vem ele vai estar novamente na arquibancada, porém todo fardado igual às outras 50 000 pessoas que lhe rodeiam, gritando: "GOOOOOOL!" Feliz como "um pinto no lixo", unido a uma equipe e comemorando a simplicidade do futebol que lhe invade a vida através do radio, televisão, jornal, internet e principalmente dos amigos e colegas que na segunda feira ele vai flautear ou deles fugir, dependendo do resultado do jogo do final de semana.
A compreensão do futebol para ele se traduz em coisas simples, como a "sua equipe", que é a torcida ao seu lado, com o inconfundível uniforme do time e suas cores. A "equipe adversária", que são todas as pessoas que vestem o uniforme de outra cor. O placar, no qual o vencedor é aquele que ao final do jogo obtiver o escore mais alto. E o gol... Cada gol é uma injeção de um coquetel incrível de adrenalina, felicidade, satisfação e êxtase, comungada por milhares de pessoas no mesmo instante.
Para um humilde cidadão que busca entretenimento, pouco importa o recorde. Tudo o que ele enxerga é um carro andando sozinho numa pista. Não há disputa, não há emoção e não há drama. Ele não sabe e nem tem como saber todos os sacrifícios que aquele piloto ou preparador passou para chegar nesse tempo. Só percebe que o produto que lhe foi vendido na bilheteria não proporciona o divertimento imaginado. A importância cultural do recorde tem de ser suplantada pela importância real da VITÓRIA. Mesmo na F1, não importa quem estabelece o recorde de volta ou a volta mais rápida da corrida e sim quem chega na frente ao término de todas as voltas.
Para um humilde cidadão que busca entretenimento, pouco importa o recorde. Tudo o que ele enxerga é um carro andando sozinho numa pista. Não há disputa, não há emoção e não há drama. Ele não sabe e nem tem como saber todos os sacrifícios que aquele piloto ou preparador passou para chegar nesse tempo. Só percebe que o produto que lhe foi vendido na bilheteria não proporciona o divertimento imaginado. A importância cultural do recorde tem de ser suplantada pela importância real da VITÓRIA. Mesmo na F1, não importa quem estabelece o recorde de volta ou a volta mais rápida da corrida e sim quem chega na frente ao término de todas as voltas.
Essa cultura de recorde tem de ser urgentemente substituída por algo mais moderno, mais dinâmico e mais acessível ao grande público. Para atraí-lo, os organizadores da arrancada tem duas opções: Ou fazem uma competição estruturada como um torneio, com "pé e cabeça", com começo meio e fim, com ritmo e um cronograma aceitável para quem está sentado no concreto duro, ou então partem para as atrações circenses como os shows de manobras radicais, puxadas de demonstração de carros à jato e coisas do gênero.
Contudo, desconheço alguém que vá ao circo duas vezes em um só ano, ao menos por vontade própria... Imagine então lotar as arquibancadas em uma temporada inteira!
Contudo, desconheço alguém que vá ao circo duas vezes em um só ano, ao menos por vontade própria... Imagine então lotar as arquibancadas em uma temporada inteira!
Por quê uma dragway tem duas pistas:
Que a arrancada é um esporte em ascensão ninguém duvida. Todo ano são inauguradas novas pistas, surgem novos carros e recordes são quebrados. É de fato também um esporte em evolução. Porém os novos tempos trazem também novos desafios e talvez uma reavaliação dos papéis de cada um.
Arrancada é para quem? Para quem são organizadas as provas? Tendo quem em mente são criados os regulamentos, as categorias, a própria estrutura da prova? Durante muito tempo essa pergunta foi fácil de responder: Para os pilotos, é lógico. E não só para eles, mas também por eles. Os organizadores de provas geralmente eram pilotos ou apaixonados que faziam tudo acontecer, às vezes mais em função de seu amor pelo esporte do que pelo próprio retorno financeiro.
Mas não estamos mais no tempo dos “km de arrancada”, onde pistas eram ajeitadas em qualquer estrada ou rua de cidade do interior. O esporte cresceu e as grandes provas são organizadas em autódromos ou dragways com estruturas, que tem um custo bem mais alto para operar. Pistas como o Velopark não podem mais se dar ao luxo de fazer uma prova e contarem apenas com a inscrição dos pilotos como retorno financeiro. Isso mal paga uma fração dos custos da prova.
Na arrancada dos dias de hoje os papeis se inverteram: O público que antes era um convidado até dispensável e ficava se acotovelando para poder arrastar a barriga em cordões de isolamento hoje é a figura central do negócio, principal objetivo dos organizadores. E os pilotos, que antes ocupavam essa posição foram alçados a um papel diferente: Eles são as estrelas do espetáculo. Contudo, para merecer esse novo e muito mais alto status, precisam conquistar o público. É uma nova obrigação que vem com esse papel e querendo ou não, ao participarem de provas com mais de dez mil presentes e pagantes, eles tornam-se figuras públicas.
Mas vivemos uma fase de transição e muitas pessoas nesse ramo estão com a mentalidade cristalizada em um passado que não volta mais. Querem gozar de seu novo status, mas não compreendem seu novo papel e as novas responsabilidades que surgem com ele. Reclamam da falta de patrocinadores para o esporte, mas não compreendem a relação que existe entre o público e o retorno do investimento. Tentam forçar os organizadores a fazerem uma prova voltada para os pilotos, desprezando a importância do público e o retorno do organizador, consequentemente sabotando o esporte de dentro para fora.
Um dos aspectos que mais atrai o público é o aspecto humano do esporte. Valores como coragem, garra, agressividade, determinação, talento, atitude... O esporte comercial não é nada mais e nem nada menos que um grande palco onde os pilotos são os atores, vivendo na carne seus papéis na história da vida real. Cada piloto através de sua trajetória e suas atitudes agrega para si um conjunto de valores com os quais uns ou outros espectadores se identificam, sendo isso muito mais importante para eles do que os pormenores técnicos do carro ou da categoria. Ao final do dia, a vitória ou derrota é pessoal e não do carro. Tudo é pessoal.
E se um piloto tem ou deseja ter um grande nome escrito na lateral de seu carro, pagando para ele competir, ele precisa ter a consciência de que deve isso a esses mesmos espectadores que criam o interesse no patrocinador em investir dinheiro nele. Por isso a relação do piloto com o público através da imprensa, grande ou pequena, vale ouro e merece toda a atenção. É por isso também que a lenda da NASCAR Richard Petty ficava após as corridas em uma pequena mesa, dando autógrafos até o último fã. Cada vez mais nesse esporte o fã é o pilar central que mantém a estrutura de pé.
Muitos pilotos atuais têm um grande medo da disputa direta, sentem verdadeiro pânico de que os bastidores apareçam ao público e fazem qualquer coisa por debaixo dos panos para que fique uma imagem, mesmo que completamente falsa, de que todos se dão bem e que nunca houve e nem haverá uma rivalidade. Isso me obriga a buscar em outro esporte uma analogia para demonstrar o quanto essa situação é descabida: Imagine um lutador de boxe, procurando a mídia e dizendo aos repórteres que seu adversário é na verdade um grande amigo e que ele luta boxe por amizade, nutrindo carinho e amor fraternos por todos os seus oponentes...
A arrancada é um duelo, uma medição de forças, de marcas, de competências e de filosofias. Foi assim que ela nasceu nas ruas e desertos de sal dos Estados Unidos, entre desafios, bravatas, afrontas e provocações. Motivada pelos mesmos sentimentos que dão origem às disputas humanas em qualquer plano. Não se arranca por amizade, não se deseja deixar o adversário para trás em frente a trinta mil pessoas por consideração a ele, do mesmo modo que um lutador de cem quilos não dá um soco na cabeça do oponente com toda a sua força por especial afeto fraterno. Essas são as emoções humanas e seu valor não está em serem politicamente corretas. Está em serem verdadeiras.
Talvez seja tempo de aceitar as coisas como elas são, assim respeitando mais o discernimento do público. De aceitar as rivalidades como naturais de todos os esportes e assim compreender que nas corridas, no boxe, no futebol ou mesmo na vida, rivalidades não são brigas. Entre outras coisas, as disputas esportivas são uma forma que o ser humano encontrou para extravasar seus instintos mais competitivos sem ter de recorrer às vias de fato. Após milhares de anos de evolução, o homem é um bicho que tem o domínio da sua fúria, mas isso não significa que os instintos mais básicos não habitam uma caverna, bem lá no fundo de cada um de nós. Saber o momento de liberar e controlar esses instintos é o que nos diferencia tanto dos robôs sem sentimentos, como das feras selvagens.
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