terça-feira, 30 de novembro de 2010

Desenhando sem borracha


Certa vez, um cara aí, chamado Millôr Fernandes disse que "Viver é desenhar sem borracha".

E desde a primeira vez que ouvi isso, gravei. Gravei porque achei que era mesmo um excelente resumo da existência de uma pessoa. Tudo na vida podemos fazer, menos voltar o tempo e corrigir os erros.

Transplante essa filosofia para certas situações da vida. Imagine que você é um especialista em bombas e está desarmando um artefato extremamente potente, no meio de um local lotado de pessoas, com um cronômetro lhe pressionando... Aí você corta o fio verde... Mas o certo era o amarelo...

Ou então você está implodindo um grande edifício condenado, que pode desabar a qualquer momento, num local cheio de outras construções. Ao acionar o detonador, você percebe que as cargas de explosivos foram mal colocadas e o edifício de 40 andares inclina-se para o lado de uma quadra de residências...

Você está pilotando um carro de corridas, em segundo lugar, colado no primeiro há várias voltas, mas não encontra uma brecha para ultrapassar. É a última volta da prova, última curva. Você então visualiza uma linha diferente, força ao limite, tenta ultrapassar por fora e perde o carro, rodando, ficando preso nos pneus e tirando último lugar...

Há um provérbio chinês que diz: "Três coisas nunca voltam: A flecha lançada, a palavra dita e a oportunidade perdida".

Ou seja meu amigo: Se correr o bicho pega, mas se ficar o bicho come.


Então eu pergunto: Qual o sentido de um tipo de competição cujos participantes valorizam mais o recorde que a vitória, como ocorre na arrancada tradicional brasileira?

Vencer é difícil, envolve ter um carro que seja rápido, que não apresente problemas. Envolve ter um piloto que seja não só rápido, mas também não erre. Porque o adversário está ao lado, perseguindo a mesma vitória. Qualquer coisa que venha a dar errado não poderá ser apagada. E a arrancada é tão rápida que dificilmente haverá tempo de corrigir.

Já o recorde... O recorde é bem mais fácil. Basta investir uma fortuna no carro e botar qualquer um para pilotar. Mesmo se o carro falhar, é só tentar mais uma vez. Ninguém vai impedir. Se o carro engasgar, se o piloto queimar a largada, se errar a marcha, se patinar demais... É só dar meia volta e tentar mais uma vez! Não importam os erros, só os acertos.

Correr por um tempo é o mesmo que escrever à lápis.

Mas vencer uma corrida... É diferente. Quando todos querem vencer, vão ao limite. Se o carro estragar, azar, arruma-se! Se não der pra consertar, corre-se assim mesmo! Não se pode dar tudo em busca de um único tempo, porque depois dessa eliminatória você terá que ter o carro inteiro para vencer um outro competidor, provavelmente mais forte que o que você acabou de enfrentar.

Se você errar, não tem outra puxada, terá de consertar o erro ali mesmo. E por isso é bom que o erro seja pequeno, ou senão não terá mais volta.

Arrancar e fazer reação baixa é fácil, mas quando o resultado do trabalho de semanas ou meses tem de ser posto a prova numa única arrancada, a pressão inibe a vontade de arriscar a loteria. Você faz aquilo que é capaz de fazer, porque nao pode ser irresponsável e colocar tudo a perder queimando a largada.

Consegue segurar os nervos, largar na hora certa, segurar a tração do carro, não errar as marchas? Isso tudo sob a enorme pressão do olhar de milhares de pessoas e da sua equipe, que trabalhou duro para colocar o carro ali naquele momento? Essa vitória não é só sua...

Pessoas adultas escrevem a sua história com caneta e não com lápis. Como disse Millôr Fernandes, Viver é mesmo desenhar sem borracha.

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