domingo, 30 de janeiro de 2011
O bochecho
Bem, estamos na alta temporada de verão: Férias, praia, sobras de contas do final de ano, carnaval no horizonte... Tudo isso significa que a alta temporada de verão acaba sendo sinônimo de baixa temporada nas corridas. Até há alguns eventos ocorrendo, mas nada de muito relevante.
Mas o blog não pode parar, então tenho que achar algo para comentar, mesmo nessas épocas de entressafra. E como o final de um ano geralmente é uma época de auto-avaliação e reflexão, isso acaba trazendo algumas velhas memórias - que no meu caso, quase que invariavelmente tem um carro como tema central, ou o mundo dos carros como pano de fundo - e pensei que essas memórias não podem ser esquecidas, afinal... Poxa, são as memórias da minha vida, tudo aquilo que constitui a própria matéria prima da qual confecciono a minha existência nesse mundo tão efêmero...
Ou, menos filosofica mas talvez até mais importantemente: Precisam ser lembradas, nem que seja para dar boas risadas com os amigos e leitores aqui desse humilde espaço.
Pois bem, vou começar esta com aquela célebre: "Tem um amigo meu..."
Afinal, quem não tem aquele amigo louco, ou melhor dizendo, com uma leve incompatibilidade com a sociedade e com o modo de vida das pessoas "normais"? Enfim, eu tinha um amigo assim. E sendo meu amigo, logicamente que gostava de carros e de modificá-los. E claro que ele fazia isso ele mesmo e à sua maneira, que não podia ser mais peculiar.
Como todo guri, o Gonçalo (não vou usar nomes verdadeiros e à partir daí vocês já devem imaginar que vem bomba) gostava de carros rebaixados, rodas grandes, "euro", com herança preferencialmente alemã. Dirigia um VW já antigo, bem sovado, mas com motor de 2 litros e tinha um desprezo especial por modelos 1.0.
Era o início da era dos carros 1.0, ou um pouco depois, logo após as montadoras abandonarem o sistema "pé-de-boi" e começarem a vender os milzinhos com alguns equipamentos a mais e um visual não tão horrendo como os primeiros modelos.
Hoje, menos ingênuo, desconfio que o Gonçalo não tinha nada de fato contra a motorização 1.0 em si, mas sim em relação ao fato de que esses modelos começavam a representar, para pessoas de de faixa etária e nível sócio-econômico que ele considerava similares aos dele próprio, a chance de adquirir um veículo zero km. Coisa que ele não tinha condições.
Então ele se orgulhava muito do seu Santana GLS 2.0 completo, top de linha, mas que já tinha uns bons anos de uso e na verdade só caiu na mão dele, porque o pai tinha comprado o carro zero e na hora de trocar provavelmente foi mais vantajoso passar o Santanão pro guri, do que passar o desgosto de receber uma ninharia na troca por um mais novo.
Gonçalo não odiava apenas os carros 1.0, mas também todo o estilo de vida relacionado: Trabalhar 8 horas por dia, de camisa e calça social, em algum escritório e, como ele dizia na época: "Não produzir nada". Já ele mesmo sempre foi o tipo de pessoa que produzia muito. Muita confusão, muitos problemas e consequentemente, muitos episódios incomuns, sendo que alguns deles eram bastante engraçados.
Gonçalo não tinha completado o ensino formal. No que tocava a escola, ele era como um Einstein ou Isaac Newton, só que sem a genialidade. Não que fosse burro, bem pelo contrário, mas usava a inteligência apenas para fazer merda.
Certa feita, numa dessas temporadas de verão o pai de Gonçalo resolveu tirar férias e viajar com o restante da família, cometendo a incomensurável insensatez de deixar o filho tomando conta das coisas enquanto ele ficava fora, longe durante semanas e com data préviamente determinada para voltar. Ou seja: Pediu.
De todas as coisas que ocorreram nesse período, vou me ater apenas às que nos interessam e ao menos por enquanto, não vou falar sobre os travestis ou o gato que ele jogou pela janela do sexto andar. Vou falar apenas sobre carros.
Como a viagem era de avião, o confiante pai deixou na garagem seu Passat alemão novinho, na única vaga da garagem do apartamento. E claro que deixou a chave em casa. Nem preciso dizer que o avião ainda nem tinha decolado e no lugar da vaga do Passat estava o Santana, enquanto o legítimo alemão já passeava pelas ruas da cidade, com nosso herói ao volante.
As semanas passaram rapidamente e pelo que eu me lembre, nenhum dano severo foi imputado ao Passat do coroa. Até que chegou o dia da volta. Gonçalo aparentemente queria aproveitar o passat até os últimos segundos e enquanto o avião já estava abaixando o trem de pouso, o tresloucado aparece lá na oficina, precisando de ajuda urgente para tirar o Santana da garagem do prédio e colocar de volta o Passat, tudo no melhor estilo Tom Cruise em Risky Business: Quando o velho chegasse, encontraria tudo imaculado, inclusive o carro, que naturalmente seria o objeto que despertaria a maior desconfiança.
Ah... Me esqueci de mencionar que em função de sua inépcia para os estudos em função de sua total insuburdinação à autoridade, unida a sua criatividade fértil e paixão por carros, Gonçalo acabou se tornando cientista maluco de todas as atividades que envolvessem fios e elétrica de automóveis, como som, alarmes, faróis especiais, vidros elétricos e etc.
Então, não preciso também dizer que ele precisava ajuda porque o Santana não pegava e era impossível empurrar para fora pois o estacionamento em que estava era no nível subsolo. Como não tinha bateria, lá fomos com um cabo de ponte. Fizemos a conexão na bateria do Passat, mantivemos o motor ligado e o arranque do Santanão virava bonito (ainda mais com o nada de compressão que restava ao motor após uns 400 000 km).
Só que o carro não pegava. O troço era carburado à gasolina e concluímos que depois de tanto tempo parado havia secado a cuba. Precisava de um "trago", ou seja, uma injeção de combustível direto no coletor de admissão, assim o motor gira e movimenta a bomba mecânica que puxa combustível para o carburador e assim a coisa vai.
Mas organizado que ele era, não tinha nenhuma ferramenta, não tinha um galãozinho de gasolina e muito menos um recipiente para dar o trago. E o cronômetro correndo...
De rompante, surge um brilho nos olhos de Gonçalo, quase como se dissesse "eureka", ou surgisse aquela lâmpada em cima da cabeça dele, como ocorre com o Professor Pardal. E imediatamente ele começa a fuçar no cofre do Santanão, como se fosse um rato, no meio daquela miríade de fios e cabos de som, alarme e todo o tipo de coisas mais que se possa imaginar, até que encontra o filtro de combustível.
Puxa com vigor a mangueira que leva do filtro ao motor (que logicamente já não tinha mais a abraçadeira) e para o meu espanto ele coloca a boca na saída do filtro e suga toda a gasolina...
Rapidamente ele procura a boca do carburador e cospe aquela gasolina dentro do coletor ao mesmo tempo em que segura a borboleta do 3E aberta... Vira-se então para nós e em seu semblante vemos um misto de felicidade e orgulho pela idéia, mas que não conseguem se sobrepor à cara toda torcida que ele faz em função do gosto repugnante da gasolina dentro da boca. Era como se seus olhos estivessem sorrindo, mas o resto da face se retorcesse de uma forma pior do que se tivesse chupado cem limões de uma só vez.
Mas como sempre ele não se abalou por tão pouco, rapidamente entrou no carro, bateu arranque e... Voilá! Pegou de prima!!!
Mal podía crer. Olhei para o nosso amigo em comum, o Tiago, que estava junto naquela empreitada e percebi que ele estava tão estupefato quanto eu. Não havia ainda nem me recuperado daquilo e ele já estava manobrando o carro para fora e dizendo que agora iria "sobrar tempo" e que tínhamos que subir no apartamento dele, pois ele iria nos mostrar um site incrível. Eu não queria nem imaginar do que se tratava...
Então enquanto subíamos para o apartamento no elevador ele começa a nos falar sobre esse site, o CVS... "Cara, vocês tem que ver, é um site pornô, mas não é um site comum, é o CVS Bizarre Sex! Tem que ver, tem com cachorro, com cavalo, tudo que é bicho! E não é só com bicho, tem com alimentos também, bananas, maçãs e até uma que enfia uma latinha de refri no..."
Nosso amigo em comum então interrompe, aparentemente chocado: "Mas Gonçalo, mulher pelada só ou sexo normal então não tem?"
Antes que Gonçalo pudesse protestar contra a caretice do nosso amigo Tiago, ele sente algo diferente na boca e o clima fica tenso... Começa a mexer num dos molares, como se tivesse algo preso ali e tanto mexe que fica com o dente na mão... Tira da boca, mostra pra nós e fala, como se não fosse nada: "Ah, já sei o que houve..."
Tiago olha para mim e não consegue conter o murmúrio: "Mas ô meu... será que foi a gasolina?"
Normalmente eu teria dado uma gargalhada, mas pra mim parecia óbvio que após poucos minutos de ele ter feito um suculento bochecho com gasolina aditivada o dente dele havia caído, bem na nossa frente... Fiquei mudo, mas Gonçalo escutou o comentário de Tiago e disse hiperativamente, como se aquele elevador não chegasse nunca ao andar: "Fica frio, não tem problema, não dá nada, é assim mesmo".
Assim mesmo???
E assim que saímos do elevador, com essa mesma naturalidade, começou a falar novamente sobre o CVS Bizarre Sex, bastões de baseball e todo o tipo de zoofilia, ao mesmo tempo em que compulsivamente passava a língua no buraco deixado pelo dente que inexplicavelmente tinha caído após um banho de gasolina.
Gonçalo entrou então no apartamento e dirigiu-se imediatamente à geladeira. O apartamento era espaçoso, mas a entrada da cozinha era estreita, de um lado ficava a geladeira e do outro o freezer. Quando foi abrir a porta da geladeira, surgiu do nada um gato branco de madame em cima do freezer. O gato tinha uma expressão assassina nos olhos, parecia uma jaguatirica enfurecida e estava prestes a atacar. A fera felpuda não tomou sequer conhecimento de mim e do Tiago, dava para ver que o negócio era pessoal. Mas felizmente Gonçalo identificou a ameaça a tempo e conseguiu se defender do que seria um ataque fatal "às traição", escorraçando o gato para a lavanderia.
Não sei o que deixou aquele gato assim, mas com certeza os dois ainda tinham algo a resolver. Porém, antes que eu pudesse pensar nisso, Gonçalo abriu a geladeira e pegou da porta um tubo de Super Bonder. Impassível como antes, abriu o tubo, tirou o dente do bolso e começou a colocar cola. Tiago a princípio achou que fosse uma piada, mas quando ele pegou o frasco e começou a colocar cola também na gengiva tudo ficou explicado....
Colou então o dente no lugar, fez pressão por uns 15 segundos, mas que naquela cozinha apertada, a 3 palmos um do outro e com a fera doméstica espreitando de cima da Enxuta, para nós pareceram mais uma eternidade. Quando terminou o processo, cerrou os dentes tentando alinhar melhor a oclusão do molar recém colado, olhou para nós, ambos com os olhos arregalados de incredulidade e disse:
"Vamos ali ver o CVS?"
Ah, e para quem quer saber dos travestis... Bem, essa eu conto quem sabe nas férias do ano que vem!
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